O TRISTE FIM DA TEIMOSA

MARIANE VILAS-BOAS MELO
3 min readJan 14, 2020

É madrugada, eu acho. Estou na praia, vazia. Não vejo nada, nem ninguém. Penso que estou cega. Sei que estou na praia porque ainda sinto cheiro, sinto água do mar nos meus pés, escuto o barulho das ondas e de gaivotas. Fico na dúvida se é noite ou se estou cega, não acredito nisso, como eu vim parar aqui? Cadê a lua? E as estrelas?

VOCÊ NÃO ESTÁ CEGA, diz uma voz grave e parece que vem do céu. Olho pra cima e também não vejo nada.

Ok, aceito, não estou cega. Será Deus ou só o narrador? Isso é um remake do Show de Truman? Será que dessa vez o Truman sou eu e aceitei toda essa palhaçada? Agora um narrador me acompanha? Vamos quebrar juntos a quarta parede?

VAMOS MULHER, FAÇA ALGUMA COISA, a voz grita.

Desisto de entender, lembrei da Clarice: Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento. Sei que estou viva e começo a correr desesperada. Vai me dizer que você não faria a mesma coisa? Entre gritos de socorro e tropeços, sento na areia. Faz frio e eu só quero poder enxergar. Depois de horas, ou de minutos, não sei, perdi a noção do tempo, me entrego: entro no mar.

Uma luz vermelha se acende, meus olhos ardem. É um farol e a luz começa a girar. É um pequeno giroflex, me lembrou a polícia. Fico feliz, finalmente enxergo, e choro. Tudo vermelho, um alarme soa, PÃ PÃ PÃ PÃ, ATENÇÃO, POR FAVOR, NÃO ENTRE NO MAR, PÃ PÃ PÃ, POR FAVOR, ALERTA VERMELHO, CÓDIGO 58, PÃ PÃ PÃ, ALERTA VERMELHO.

Eu fico paralisada com água no joelho. Mas que porra…

VOCÊ ESTÁ LOUCA? Escuto e olho pro céu. É automático.

SAIA JÁ DAÍ. VOCÊ AINDA NÃO SABE NADAR.

Claro que eu sei.

NÃO, VOCÊ NÃO SABE NADAR NO ESCURO, VOCÊ NÃO PODE. VOCÊ VAI SE AFOGAR.

Ignoro. Com água nas coxas e ondas quebrando na virilha, sigo.

NÃO, NÃO, NÃO! VOCÊ NÃO PODE NADAR NO ESCURO, VOCÊ VAI SE AFOGAR.

Confesso que tive medo. O mar muda no escuro? Além do mais, a luz vermelha do farol me ajuda a enxergar, eu vejo minhas mãos, meus cabelos, minha roupa, e tenho a brilhante ideia: vou até o farol.

Ando, perco o chão de areia e quando dou por mim já estou nadando.

No primeiro mergulho tudo fica escuro e silencioso de novo, sem luz do farol, sem alarme, sem código vermelho. Penso: Morri. E aceito.

Já que estou morta não tenho mais medo. Não preciso mais subir pra recuperar o fôlego, continuo, bato os pés como um peixe, fecho os olhos, abro as águas com as mãos e impulsiono meu corpo pra frente, estou nadando.

Ah! o medo, ele me mantinha viva.

Morta eu perco o propósito, não tem farol, não tem destino, não tem a superfície pra voltar, estou presa no mar. Até tento voltar, não tem maré que me ajude, estou presa no espaço tempo que fui insistir na ideia de que conseguia. Estou presa no momento em que não ouvi a voz de Deus e morri.

Começo a chorar, choro com saudade do farol de giroflex de polícia. As lágrimas debaixo d’água já não fazem o menor sentido. É tudo a mesma coisa, água com sal. Toco meu rosto e não sinto nada. Teria eu me tornado só uma alma vagando no mar? Até as lágrimas são frutos da minha imaginação? Seria essa a única coisa que me restava? Triste fim.

Comecei a imaginar uma morte melhor: velha, com família, cachorros, um jardim pra cuidar. Na minha cabeça eu morri com 85 anos, dormindo, causas naturais.

Mas o mar ainda está lá. Parece que Deus estava brincando comigo antes de me mandar logo do pro inferno. Desisto outra vez, não luto, me entrego e espero. Depois de horas, minutos, dias, meses, anos, não sei dizer — eu perdi a noção de tempo, a voz de Deus grita:

TEIMOSA, EU AVISEI.

TEM QUE ESPERAR AMANHECER PRA APRENDER A NADAR.

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MARIANE VILAS-BOAS MELO
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Written by MARIANE VILAS-BOAS MELO

“see enough and write it down” — joan didion

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