No Mundo Moderno Eu Não Sinto Nada
Resolvi sair de casa depois de três dias praticamente enclausurada, presa por vontade própria, cumprindo a sentença que eu mesma me dei no meu apartamento alugado de oitenta metros quadrados. Uma cela completa, com um bom banheiro, comida saudável na geladeira e livros infinitos no Kindle.
Chovia muito, como em todo verão, e toda vez que isso acontece, alguém se fode e morre. Esperei a chuva passar um pouco para conseguir deixar minha detenção e desfrutar da liberdade. Fazia calor, mas uma chuva fina ainda caía. Estava quase de noite. Caminhava e me imaginava em Dublin, pensava na Sally Rooney, em como ela era chata e como eu gostava dela mesmo assim. Lembrei que ela e o pessoal do Fontaines DC são contemporâneos e talvez tenham frequentado o mesmo bar em Dublin — ou pelo menos um personagem pobre que a Sally escreveu deve ter ido lá.
Caminho na minha Dublin imaginária, que na verdade está mais para floresta amazônica. Sinto um calor inédito. Um pingo de suor começa a se formar entre meus seios, e a chuva para. E fica só aquele momento horrível em que as árvores e as calhas despejam aquelas gatonas d’água aleatoriamente na minha cabeça. O cenário é esse: calor, aquele cheiro de chuva misturado com esgoto, fumaça, lixo.
Entro num café, abro meu computador. Peço um coado e um cookie, mesmo tendo prometido que não comeria açúcar essa semana. Escrevo no bloco de notas: “A vida é o que acontece às 11h35 de uma quarta-feira.”
Essa é a vida que tenho. Eu não a que eu fico idealizando, com os zeros sobrando na minha conta, com as fotos da Europa que ainda não conheço no rolo de câmera do celular, com as botas e sandálias que não existem no meu armário, nem os vestidos pendurados no cabideiro.
A vida é o que acontece às 11h45 de uma quarta-feira banal.
É quando eu torço pra chover, mas me sinto mal porque, quando chove nessa cidade, um monte de gente se fode e morre.