irreconhecível
O primeiro gole do Campari às 18:12 de um dia bosta me arrepia dos pés a cabeça. Amarguinho gostoso. Os carros passam e buzinam e eu não ligo. Acho que me acostumei. Pássaros antecipam a notícia: a chuva está pra chegar. A cidade está com aquela energia caótica que só os dias de eleições e finais de copa do mundo são capazes de proporcionar. A diferença é que o brasileiro realmente gosta de futebol. O problema é quando ele trata a política como futebol. Ouvi um tiro. Veio do prédio da frente do meu. Acho que alguém se matou. Ou será que foi assasinado? Talvez nunca irão noticiar isso. Ética. Nunca vou entender. Meia hora depois uma ambulância chega. Maca. Corpo coberto. Tudo tão rápido. Ainda chove. Ainda não temos prefeito. Ainda não entendo nada. Eu não acredito em políticos. Eu não acredito no sistema, como eu poderia acreditar em políticos? A ambulância vai embora e meu copo está vazio. Já é noite e Jimmy Campbell grita no meu aparelho de som. Te escrevo mais uma carta. Tenho medo de esquecer do seu rosto. Aumento o volume. Desligo o som. Saio na chuva. Pergunto pro porteiro: E esse tiro? Bem na cabeça, ele responde. Ficou irreconhecível. Entro num táxi. O rádio já comemora a vitória do mauricinho. Nada de novo. Ainda chove e eu ainda não entendo nada. Essa cidade acabou e ninguém viu. E eu não sinto mais nada.